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Testes brasileiros na autoestrada para exames de patentes: Patent Prosecution Highway (PPH) em construção

Heloísa Gomes Medeiros

O Brasil, desde 2016, realiza um projeto piloto de Patent Prosecution Highway (PPH) com os Estados Unidos e começará outro com o Japão no dia 1° de abril do corrente, ambos com duração de dois anos. Os projetos são executados pelos escritórios de patentes do Brasil, dos Estados Unidos e do Japão, respectivamente, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), o Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos (em inglês, United States Patent and Trademark Office – USPTO) e o Escritório Japonês de Patentes (em inglês, Japan Patent Office – JPO). Tratativas também estão sendo estabelecidas para um PPH piloto com o Escritório Europeu de Patentes e com os países do Prosur.[1]

O Patent Prosecution Highway (PPH), iniciado em 2006 também em formato piloto entre Estados Unidos e Japão[2], consiste num acordo de cooperação entre escritórios de patentes de todo mundo[3] com o fito de acelerar o exame de patentes, o que, consequentemente, diminuiria o acúmulo (backlog) na análise desses pedidos. O PPH, de acordo com o INPI, permite que “um pedido de patente cujo membro de mesma família tenha sido deferido no Escritório de Primeiro Exame (OEE) é elegível para ser priorizado no Escritório de Segundo Exame (OLE) com um procedimento simples, a pedido do requerente”. No mesmo sentido, o USPTO, explica:

Nos termos da PPH, os escritórios de patentes participantes concordaram que, quando um requerente recebe uma decisão final de um primeiro escritório de patentes no qual pelo menos uma reivindicação é permitida, o requerente pode solicitar o exame rápido das reivindicações correspondentes num pedido de patente correspondente pendente em um segundo escritório de patentes. O PPH utiliza procedimentos de exame acelerado já em vigor entre os escritórios de patentes participantes para permitir que os requerentes cheguem à disposição final de um pedido de patente mais rápida e eficientemente do que o processamento de exames padrão.[4] 

Fonte: United States Patent and Trademark Office – USPTO (2015)

O procedimento acelerado no exame de patentes promete:

  • evitar duplicação de trabalho nos escritórios de patentes;
  • maior qualidade na pesquisa e no exame dos pedidos, pois o segundo escritório terá acesso aos relatórios e exames de busca do primeiro escritório;
  • exames mais rápidos, menos custosos e com maior previsibilidade dos resultados;

Compartilhamento de trabalho entre escritórios

O primeiro grande questionamento que surge sobre o PPH diz respeito a verdadeira intenção por trás de sua constituição: o compartilhamento de trabalho entre escritórios tem o objetivo de reduzir o backlog ou tem características de um acordo de harmonização?[5]. Dois fenômenos mundiais reforçam essa preocupação: a agenda expansionista para maximização de direitos de propriedade intelectual em âmbito internacional a partir dos mais diversos foros[6] e a tendência que escritórios de patentes do mundo todo façam parte de uma rede de governança privada, globalmente integrada, que serve os interesses das empresas multinacionais.[7]

O PPH pode ser a porta de entrada para que o escritório de patentes brasileiro passe a aceitar regras ainda não claramente estabelecidas na legislação nacional, mas já implementadas internamente nas legislações de seus parceiros e que são pautas levantadas em negociações internacionais por eles. É o caso da aceitação de patentes para polimorfos e segundo uso em medicamentos ou patentes de software. Num esquema como o PPH, existe a possibilidade de um escritório de patentes líder, principalmente de países desenvolvidos, ter forte influência na constituição das diretrizes para análise de patentes de outro escritório, em sua maioria de países em desenvolvimento, e provocar uma harmonização antidemocrática, pois não devidamente discutida na esfera legislativa. O resultado final é o total desmantelamento do princípio da soberania dos países na propriedade intelectual. 

 

Tal preocupação torna-se muito maior quando associada ao papel que os escritórios de patentes vêm assumindo na defesa do interesse de grandes empresas privadas, o que contraria o interesse público e coletivo que deveria permear essas instituições. Peter Drahos demonstra, em seu estudo sobre escritórios de patentes como agentes cruciais na economia global do conhecimento, que, conjuntamente, os escritórios dos Estados Unidos, União Europeia e Japão, tornam os escritórios de patentes dos países em desenvolvimento parte da rede de governança privada por meio da promoção estratégica da confiança tecnocrática, como o PPH.[8]

Qualidade de patentes

Em segundo lugar, questiona-se o argumento sobre o aumento na qualidade de patentes que o processo poderia resultar. Qualidade de patentes significa dizer a aplicação adequada pelos escritórios de patentes dos critérios de patenteabilidade exigidos por lei, isto é, que na concessão de uma patente foram rigorosamente atentados os requisitos de novidade, atividade inventiva, aplicação industrial e suficiência descritiva. Uma patente de alta qualidade não significa que a invenção é de alta qualidade, não se busca no exame da patente uma análise sobre a qualidade do invento.[9] O contrário de uma patente de qualidade normalmente é denominado de patente frívola ou trivial.

A qualidade da patente irá incidir sobre o tema da validade da patente:

A questão relativa à validade do direito é respondida examinando critérios para a criação do direito. O teste é se os critérios para a criação do direito estavam presentes no momento em que o direito alegadamente surgiu. Se a resposta for negativa, o direito não é, e nunca foi, válido. Tais casos surgem frequentemente perante os tribunais. Alternativamente, os critérios poderiam ter sido cumpridos no momento em que o direito entrou em existência, mas agora não são mais atendidos. Nesse caso, o direito já não é válido.[10]

Erro na avaliação de concessão de uma patente não é algo raro de ocorrer[11] e, normalmente, são resolvidos por meio de demandas judiciais. Países em desenvolvimento, nesse contexto, por apresentarem menos recursos judicias (humano e estrutural, como juízes e cortes especializadas) devem ter seus critérios de exame ainda mais rigorosamente aplicados, de forma que não restem muitas dúvidas sobre a validade de uma patente. Processos judiciais são reconhecidamente um grande empecilho a entrada de novos competidores no mercado de tecnologia. Assim, para que se tenha uma boa qualidade de patentes, os escritórios de patentes devem estar munidos de instrumentos técnicos e humanos capacitados para realizar o exame da patente.

Esse é um tema constante na agenda do comitê sobre patentes da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) – Standing Committee on the Law of Patents (SCP) – e é permeado por duas visões sobre a forma pela qual pode ser alcançada: “os países desenvolvidos são favoráveis a partilha do trabalho e a harmonização do sistema de patentes, enquanto os países em desenvolvimento consideram qualquer tentativa de harmonização como uma ameaça à sua soberania no domínio da concessão de patentes”[12].

Os acordos bilaterais que o Brasil assinou com o Estados Unidos e Japão demonstram um aspecto importante das tratativas internacionais, elas falharam no âmbito dos organismos multilaterais e é alvo da mudança de foro (forum shifting), estratégia comum da expansão de direitos de propriedade intelectual.[13] Os países desenvolvidos, tendo em vista o alcance de seus objetivos em âmbito internacional, mudam de forma simultânea e coordenada o foro das discussões de acordos sobre propriedade intelectual, visando implementar níveis mais elevados de proteção que não foram possíveis de serem conquistados nos foros originais sobre a matéria, especificamente na Organização Mundial do Comércio (OMC) e na OMPI.[14] Os acordo bilaterais podem ensejar uma mudança indireta do sistema multilateral de propriedade intelectual, tendo em vista o princípio da nação mais favorecida.

Como os critérios de patenteabilidade de cada país são diferentes, o que é exemplar no caso do Brasil, Japão e Estados Unidos – cujas leis estão longe de serem harmônicas –  o melhoramento sobre a qualidade das patentes sentirá efeitos relativos com a assinatura do PPH. A ampliação e qualificação de examinadores de patente ainda consiste numa das maiores demandas a ser satisfeita para atender a necessidade de qualidade de patentes. Além disso, como propõe Peter Drahos, a qualidade de uma patente deve ter em vista tanto o cumprimento dos requisitos de patenteabilidade quanto observar o contrato social ao qual está conectada, isto é, como um meio de alcançar desenvolvimento econômico e tecnológico estabelecido na Constituição Federal

Eficiência para quem?

O PPH certamente facilitará o trabalho de busca dos examinadores de patentes ao oferecer subsídios facilitados sobre o estado da arte de invenções. Será também um elemento importante na competição entre empresas, que encontram mais um mecanismo de proteção estratégica de seus intangíveis. Situação que demandará das empresas nacionais um grande desafio quanto a adoção de técnicas similares às empresas multinacionais, o que, ao mesmo tempo, representa um empecilho a entrada de novos competidores nacionais que não possuem a mesma capacidade e estrutura das multinacionais, além dos novos custos financeiros e temporais associados à conformidade dos novos parâmetros.

Como projeto piloto será possível verificar desde o início os custos econômicos e sociais da implementação desse sistema, não somente quanto ao aspecto da rapidez na análise de patentes, mas, principalmente, relacionado à qualidade dessa análise. Os meios utilizados para realizar os objetivos de diminuição da duplicação de trabalho e aceleração da análise pelo maior acesso a subsídios devem ser minuciosamente investigadas nos próximos anos.

Deve-se ter em conta que, o PPH:

  • não significa reconhecimento mútuo ou transferência de regras ou práticas dos escritórios envolvidos;
  • nem deve ser considerado um meio de harmonizar leis de patentes;
  • não presumem validade automática de uma patente no segundo país no caso de ser concedida no primeiro país;
  • não descarta a necessidade da realização de processos legislativos quanto aos pontos não esclarecidos na legislação nacional, e que esses não podem ser decididos em esfera administrativa;
  • reforçam a necessidade de ampliação e qualificação de examinadores de patente.

 


[1] INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL (INPI). INPI e JPO assinam acordo para realizar PPH piloto entre Brasil e Japão. Disponível em: <http://www.inpi.gov.br/noticias/inpi-e-jpo-assinam-acordo-para-realizar-pph-piloto-entre-os-dois-paises/view>. Acesso em: 19 mar 2017.

[2] United States Patent and Trademark Office (USPTO). U.S. and Japan fo Pilot Patent Prosecution Highway: trial program will improve quality and efficiency at both offices. 2006. Disponível em: <hhttps://www.uspto.gov/about-us/news-updates/us-and-japan-fo-pilot-patent-prosecution-highway>. Acesso em: 19 mar 2017.

[3] Os Estados Unidos, por exemplo, possuem acordos desse tipo com a Austrália, Canadá, China, Japão , Coreia, Portugal, Espanha, Alemanha e Argentina. Além de acordo bilaterais, existem ainda iniciativas plurilaterais como o IP5 Patent Prosecution Highway (IP5 PPH), entre União Europeia, Japão, Coreia, China e Estados Unidos.

[4] United States Patent and Trademark Office (USPTO). Patent Prosecution Highway (PPH): fast track examination of applications. 2015. Disponível em: <https://www.uspto.gov/patents-getting-started/international-protection/patent-prosecution-highway-pph-fast-track>. Acesso em: 19 mar 2017. Tradução nossa: “Under PPH, participating patent offices have agreed that when an applicant receives a final ruling from a first patent office that at least one claim is allowed, the applicant may request fast track examination of corresponding claim(s) in a corresponding patent application that is pending in a second patent office. PPH leverages fast-track examination procedures already in place among participating patent offices to allow applicants to reach final disposition of a patent application more quickly and efficiently than standard examination processing”.

[5] SAEZ, Catherine. Work-sharing between patent offices: key to reducing backlog, or harmonisation threat? In: Intellectual Property Watch. 2014. Disponível em: <https://www.ip-watch.org/2014/11/05/work-sharing-between-patent-offices-key-to-reducing-backlog-or-harmonisation-threat/>. Acesso: 19 mar 2017.

[6] CORNISH, William. The expansion of intellectual property rights. Geistiges Eigentum im Dienst der Innovation. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2001. TELLEZ, Viviana Muñoz. The changing global governance of intellectual property enforcement: a new challenge for developing countries. In: LI, Xuan; CORREA, Carlos M. Intellectual Property Enforcement: international perspective. Cheltenham, UK ; Northampton, MA : Edward Elgar, 2009. MEDEIROS, Heloísa Gomes. Medidas de fronteira TRIPS-Plus e os direitos de propriedade intelectual. Curitiba: Juruá, 2012.

[7] DRAHOS, Peter. The global governance of knowledge: patent office and their clients. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

[8] DRAHOS, 2010.

[9] DRAHOS, 2010, p. 69-70.

[10] TORREMANS, Paul. Choice of law in EU copyright directives. In: DERCLAYE, Estelle. Research handbook on the future of EU copyright. Cheltenham; Northhampton: Edward Elgar, 2009, p. 469, tradução nossa: “The question concerning the validity of the right is answered by looking at criteria for the creation of the right. The test is whether the criteria for the creation of the right were present at the time the right allegedly came into existence. If the answer is in the negative the right is not, and never was, valid. Such cases arise frequently before the courts. Alternatively, the criteria might have been met at the time the right came into existence, but they are now no longer met. In that case the right is no longer valid”.

[11] “The USPTO, for example, carries out annual quality reviews sampling somewhere between 2% and 3% of the patents that it allows with error rates of between 4% and 6% being reported”. DRAHOS, 2010, p. 72.

[12] SAEZ, 2014.

[13] TELLEZ, 2009.

[14] MEDEIROS, 2012.