Minotauro no labirinto de espelhos: a inspiração artística e os direitos autorais no século XXI

Bibiana Biscaia Virtuoso[1]

Igor Halter Andrade[2]

A etapa inicial da criação artística, ao contrário do que possa parecer em uma primeira análise, não é o momento de concepção propriamente dito, pois antes mesmo de iniciar seu processo criativo o autor precisa que algo o inspire e sirva de alicerce intelectual para o resultado almejado. A inspiração pode surgir de um sem número de situações, encontros, lugares, objetos, memórias, ou ainda – com muita frequência – de obras de outros autores. Tal processo geralmente ocorre de maneira difusa e inconsciente, já que estaria relacionado às inúmeras referências acumuladas durante a vida dos artistas, o que torna ainda mais difícil o rastreamento das ideias que deram origem a um determinado feito.

No século XXI, com a intensificação da globalização e sofisticação dos meios digitais, é comum o uso da expressão popular “nada se cria, tudo se copia”, que insinua a impossibilidade de se produzir algo completamente original frente à abundância de informações oriundas de diferentes fontes; além disso, ao considerarmos a inspiração como parte do processo criativo, podemos presumir que os conceitos elaborados também têm origem em aspectos do cotidiano. Hegel descreve essa percepção em “Filosofia da História” [1] quando discorre sobre o zeitgeist, termo alemão utilizado para expressar o “espírito de uma época”, ou a influência da cultura de um povo em um determinado período sobre a arte produzida nesse mesmo contexto – os artistas e suas obras seriam, portanto, produtos de suas épocas.

Contudo, é incontestável a existência de particularidades que são impressas nas obras advindas da subjetividade dos artistas, por isso, o direito autoral busca proteger esses aspectos, bem como as obras que possam ter lhes servido de referência direta ou indireta. O artigo 8º da lei 9.610/98 [2] traz em seu inciso primeiro o limite legal à proteção desse direito:

Art. 8º Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei:

I – as ideias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais;

Assim, o legislador evidencia sua intenção de salvaguardar apenas o produto resultante do processo artístico, não as ideias que lhe serviram de base. E quanto às ideias que derivaram de outras obras? Essa questão é complexa e depende de algumas circunstâncias; deve-se observar no caso concreto quais elementos da obra original estão presentes no novo trabalho, de que forma estão postos e se violam ou não a propriedade intelectual do primeiro autor. O artigo 29 da mesma lei trata das situações onde é necessária autorização para a utilização de uma obra ou de seus fragmentos:

Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

I – a reprodução parcial ou integral;

II – a edição;

III – a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações;

IV – a tradução para qualquer idioma;

V – a inclusão em fonograma ou produção audiovisual;

[…]

VIII – a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante:

  1. a) representação, recitação ou declamação;
  2. b) execução musical;

[…]

  1. g) a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo assemelhado;

[…]

  1. j) exposição de obras de artes plásticas e figurativas;

[…]

X – quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.

Como o exposto no excerto, há uma grande ênfase na proteção das diferentes dimensões de uma obra acabada, novamente: não são protegidas as ideias que lhe servem de inspiração, mas somente as que se manifestam de forma inequívoca e que compõem o produto final. Posteriormente, duas exceções são apresentadas no artigo 47, que apresenta as situações onde a autorização do autor é dispensável:

Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.

Apesar desse escopo legal, ainda restam muitas lacunas que deslocam a responsabilidade de interpretação ao aplicador do direito em cada situação fática. Uma definição importante diz respeito às obras que fazem alusão direta a uma obra anterior, que são denominadas pela lei 9.610/98, em seu artigo 5º, como “obras derivadas”:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:

[…]

  1. g) derivada – a que, constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária

A licença jurídica de copyright [3] criada pela ONG estadunidense Creative Commons para flexibilizar a concessão de direitos autorais a nível internacional (especialmente após o surgimento da internet) apresenta uma definição ampliada de obra derivada e de suas possibilidades de aplicação:

“Obra derivada” significa uma obra baseada sobre outras obras pré-existentes, tal como uma tradução, arranjo musical, dramatização, romantização, versão de filme, gravação de som, reprodução de obra artística, resumo, condensação ou qualquer outra forma na qual a Obra possa ser refeita, transformada ou adaptada, com a exceção de uma obra que constitua uma Obra Coletiva, que não será considerada Obra Derivada para fins desta licença.

[…]

Re-criação permitida. Você pode criar e reproduzir Obras Derivadas, desde que:

A(s) Obra(s) Derivada(s) consistam na utilização de boa-fé parcial da Obra ou sua recombinação, através do emprego de técnicas como “sampleamento”, “mesclagem”, “colagem”, ou qualquer outra técnica artística similar, conhecida agora ou concebida posteriormente, que transforme significativamente o original, conforme seja apropriado ao meio, mídia, gênero e nicho de mercado; e

As Obras Derivadas feitas por Você devem fazer uso apenas parcial da Obra original ou, caso Você decida utilizar a obra como um todo, esta utilização deve ser de boa-fé, e Você deve utilizar estas porções como uma parte não substancial da(s) sua(s) Obra(s) Derivada(s) ou transformá-la em algo significativamente diferente da Obra original. No caso de uma Obra musical e/ou de uma gravação de áudio, a mera sincronização (“synching”) da Obra com uma imagem em movimento ou não, não deverá ser considerada transformação da Obra em algo significativamente diferente.

Apesar de ser consideravelmente mais elaborado que o conceito presente na lei 9.610/98, tais possibilidades só são permitidas entre os autores que fazem uso de tal licença, que, na prática, gera efeitos semelhantes aos de um contrato.

Não é incomum encontrarmos, principalmente em obras cinematográficas, expressões como: “inspirado na obra de X”, “baseado na vida de Y”, “em homenagem a Z”, “adaptado do romance W”, e assim por diante; entretanto, é importante ressaltar que mesmo o uso desse tipo de expressão não isenta o artista de solicitar a autorização autor da obra originária, sob o risco de violar seus direitos autorais, bem como o disposto no artigo 5º, incisos X e XXVII, da Constituição Federal [4]:

X –  são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XXVII –  aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

Coloca-se a questão: quais são os critérios que determinam os limites da inspiração artística para que uma obra não viole os direitos autorais de outrem? Afinal, nem toda obra se encontra no espectro das obras derivadas. Como já foi citado, na maioria dos casos envolvendo esse tipo de conflito no Brasil, os critérios são subjetivos e ficam a cargo do magistrado ao analisar o caso concreto. O ordenamento jurídico busca proteger obras de caráter estético, individual, criativo e original, dessa forma, estudiosos do tema como Denis Borges Barbosa defendem a necessidade de um “contributo mínimo” [5], ou seja, de um “mínimo grau criativo que uma criação deve possuir para ensejar proteção por direito de autor” que, no caso da arte, o autor declara:

[…] o requisito é – embora sempre presente na doutrina, na sensibilidade dos julgadores e no instinto do público – quase um mistério. Ele existe sim, aqui no Brasil e no exterior, mas sem nome certo e sem conteúdo fixado da norma legal. Existe hoje como a atividade inventiva existia nos fins do sec. XIX, como algo cuja necessidade social se sente, uma norma in fieri que se aplica contentia sei necessitatis, mas não explicitada.

Para além dos aspectos que podem ser observados objetivamente, surgem para inspeção pontos mais delicados da criação artística, como estruturas narrativas, construções de personagens, escolhas estéticas, dentre outros. Nesse caso, ainda que empregados de forma muito semelhante em duas ou mais obras de autores distintos, raramente são passíveis de questionamento, uma vez que se aproximam das ideias trabalhadas pelo fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung, em sua obra “Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo” [6], de estruturas universais presentes no inconsciente coletivo que se repetem na arte do mundo todo, como motivos humanos fundamentais. Um grande exemplo desse tipo de estrutura é o chamado “monomito” (ou “jornada do herói”) que foi elucidado pelo antropólogo Joseph Campbell em seu livro “O herói de mil faces” [7] ao observar uma estrutura cíclica que se repete em construções narrativas e mitos do ocidente há milênios e que, portanto, nunca pertenceram a um autor específico.

Um dos critérios objetivos mais utilizados pelos juízes ao julgar uma acusação de plágio nas artes é o da exploração comercial da obra, essa interpretação, apesar de rasa, tem suas bases no Código Penal, quanto trata do crime de violação aos direitos autorais – também conhecido como crime de plágio –, em seu artigo 184 [8]:

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

  • 1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Por fim, observa-se uma enorme complexidade no que tange a questão da inspiração artística e dos direitos autorais no Brasil. O ordenamento jurídico, apesar de não se posicionar com profundidade a respeito do tema, busca um equilíbrio entre a proteção da propriedade intelectual e a garantia da liberdade de expressão, ambas asseguradas como direitos fundamentais pela Constituição Federal. Na prática, a lei é aplicada quase que intuitivamente, norteada pelo princípio da boa-fé. Cabe ao artista a responsabilidade inicial e a consciência ética para a produção de uma obra que respeite os direitos de outros autores enquanto expressam satisfatoriamente as necessidades de seu criador.

Referências Bibliográficas:

[1] HEGEL, G.W.F. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: UNB, 1995

[2] BRASIL. Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20 fev. 1998.

[3] CREATIVE COMMONS. Creative Commons: legal code. 2005. Disponível em: <https://creativecommons.org/licenses/sampling+/1.0/br/legalcode>. Acesso em: 07 set. 2018.

[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

[5] BARBOSA, Denis Borges; RAMOS, C. T.; MAIOR, R. S. O Contributo Mínimo na Propriedade Intelectual: Atividade Inventiva, originalidade, Distinguibilidade e Margem Mínima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[6] JUNG, C.V. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000, vol. IX/1.

[7] CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. 10. ed. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2005.

[8] BRASIL. Código Penal. Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940. Vade mecum. São Paulo: Saraiva, 2015.

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[1] Mestrando em Direitos Humanos e Democracia na UFPR, membro do GEDAI/UFPR

[2] Acadêmico de direito na UFPR, membro do GEDAI/UFPR

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