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Marco Civil da Internet no Brasil: A neutralidade da rede está em risco com o oferecimento de Internet gratuita como meio para conquistar novos usuários da rede

A proposta de levar a Internet gratuita para usuários de smartphones das áreas menos desenvolvidas do mundo gera um debate se esse modelo de negócio pode ser enquadrado como uma forma de inclusão tecnológica. Deve ser discutido também, se estas propostas estão de acordo com a legislação brasileira que dispõe sobre o uso da Internet e se há quebra do princípio da neutralidade da rede. Analisaremos a seguir a proposta do Facebook denominada ‘Internet.org’ e a proposta da start-up Jana por meio do aplicativo ‘Mcent’.

Camile Wiederkehr[1]

A proposta de levar a Internet gratuita para usuários de smartphones das áreas menos desenvolvidas do mundo gera um debate se esse modelo de negócio pode ser enquadrado como uma forma de inclusão tecnológica. Deve ser discutido também, se estas propostas estão de acordo com a legislação brasileira que dispõe sobre o uso da Internet e se há quebra do princípio da neutralidade da rede. Analisaremos a seguir a proposta do Facebook denominada ‘Internet.org’ e a proposta da start-up Jana por meio do aplicativo ‘Mcent’.

O que é neutralidade da rede?

O princípio da neutralidade da rede significa que todas as informações que circulam na Internet devem ser tratadas da mesma forma, sem discriminação entre um serviço e outro. De tal modo, não seria possível a oferta de serviços gratuitos, pois haveria um favorecimento para determinados serviços em face de outros.

Esse princípio garante o livre acesso a qualquer tipo de informação ou conteúdo na rede. Não impede, todavia, a comercialização de planos de internet móvel com diferentes preços de acordo com a franquia de dados utilizada.

A neutralidade da rede defende o livre acesso aos conteúdos lá disponibilizados, sem a imposição de serviços diferenciados para esse ou aquele usuário.

Sem a garantia de uma rede neutra, as grandes empresas de telecomunicação poderiam determinar preços variados para o acesso aos diferentes conteúdos disponibilizados na rede mundial de computadores. Tal conduta vai contra os princípios de criação da Internet que objetivam um ambiente livre e sem censura.

Dessa forma, entende-se a importância da neutralidade da rede para a manutenção da Internet livre e aberta e para que esse novo espaço não se transforme num ambiente antidemocrático e desigual.

Assim, os aplicativos analisados a seguir, ao permitirem o acesso gratuito aos produtos e serviços de apenas algumas empresas parceiras, estariam desrespeitando esse princípio, considerando que start-ups ou outros serviços pagos estariam em evidente desvantagem, pois não teriam condições de concorrer com os serviços gratuitos.

Isso posto, ao analisar os avanços tecnológicos obtidos com auxílio de uma Internet livre e neutra, que incentiva a inovação por meio da troca de informações de um lado do mundo ao outro, entende-se que a neutralidade da rede deve ser respeitada e mantida.

Sergio Amadeu já alertava sobre a possibilidade de práticas restritivas ao acesso amplo da INTERNET, como na matéria para o Boletim GEDAI, de março de 2012, p. 4:

A partir do momento que se restringe o acesso a conteúdos, passa-se a determinar que tipo de informação os usuários terão acesso – algo inadmissível em um Estado Democrático. Com a neutralidade da rede, estimula-se a inovação, e por consequência, a competição e a melhora nos serviços oferecidos.

Ademais, numa sociedade democrática não devem ser impostos empecilhos ao uso ou restrições ao tipo de informação veiculada ou ao tipo de usuário que poderia acessá-la.

Comitê Gestor da Internet e o Marco Civil da Rede

O Comitê Gestor da Internet no Brasil foi criado pelo Decreto nº 4.829, de 3 de setembro de 2003. Entre as diversas atribuições e responsabilidades do CGI.br destacam-se: a proposição de normas e procedimentos relativos à regulamentação das atividades na Internet; a recomendação de padrões e procedimentos técnicos operacionais para a Internet no Brasil e o estabelecimento de diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil.

O Comitê Gestor da Internet tem formação multissetorial, composto por representantes da Sociedade Civil, do governo, do terceiro setor e do setor empresarial. Além disso, participa do desenvolvimento e promoção da Internet no país, bem como deverá ser consultado em relação às possíveis exceções de neutralidade de rede, conforme disposto nos artigos 9º, §1º e 24, inciso III, da referida lei 12.965 de 23 de abril de 2014.

Na resolução RES/2009/003/P[2] do CGI, estabeleceu-se princípios para a governança e uso da Internet. Dentre eles, destacamos o princípio da universalidade e o da neutralidade da rede. O primeiro princípio dispõe que o acesso à Internet deve ser universal; um meio para o desenvolvimento social e humano, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória em benefício de todos. O segundo princípio dispõe que a filtragem ou os privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento.

Ademais, o artigo 3º da lei 12.965 de 23 de abril de 2014, conhecida como Marco Civil da Rede, dispõe sobre os princípios para o uso da Internet no Brasil. Entre eles destacamos o inciso IV, que visa a preservação e garantia da neutralidade de rede. Já o artigo 9º da referida lei dispõe que:

Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§ 1o A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I – requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II – priorização de serviços de emergência.

Assim, ao oferecer acesso gratuito a apenas alguns serviços, há evidente desrespeito ao princípio da neutralidade da rede e ao disposto na lei, visto que há uma discriminação de conteúdo fundada em razões comerciais.  Aguarda-se a regulamentação das hipóteses em que é possível a quebra da neutralidade da rede.

Portanto, como se observará a seguir, os aplicativos ‘Internet.org’ e ‘Mcent’ desrespeitam o princípio da neutralidade da rede, o disposto na lei 12.965 de 23 de abril de 2014 e na resolução do CGI, visto que só se tem acesso gratuito a serviços e produtos parceiros desses aplicativos. Para acessar os demais serviços, haveria necessidade de se pagar pelo acesso à Internet móvel.

Internet.org: neutralidade da rede em risco?

O projeto ‘Internet.org’ disponibiliza o acesso gratuito à serviços básicos na Internet, como acesso ao Facebook, à previsão do tempo, ao Wikipedia, entre outros serviços locais parceiros. Dessa forma, pretendem conquistar novos usuários de Internet, especialmente nas regiões menos desenvolvidas do globo, que não tem condições de comprar um plano de Internet móvel. O aplicativo já está disponível na Índia, Bolívia, Gana, Colômbia, Quênia, entre outros[3].

Ao limitar os serviços que o usuário pode acessar, a plataforma restringe o acesso global à Internet, privilegiando os serviços parceiros, o que violaria o princípio da neutralidade da rede. Assim, o controle do que pode ser acessado gratuitamente fica centralizado nas mãos do Facebook, prejudicando o usuário e indo contra as disposições legais vigentes sobre o uso da Internet no Brasil.

A título de ilustração, se a Internet fosse uma praça de alimentação, o projeto ‘Internet.org’ se caracterizaria como um ‘vale-sanduíche’, onde a pessoa poderia utilizá-lo apenas nos estabelecimentos ‘A’, ‘B’ e ‘C’.

Segue a visualização do aplicativo disponível para download no Google Play[4]:

internet.org screenshot.jpg

 

 

 

 

 

 

A ‘defesa’ do Facebook é que não há quebra da neutralidade da rede, é o usuário que escolhe utilizar os serviços gratuitos dessa plataforma, sendo que os serviços pagos da web continuam disponíveis. Portanto, o próprio usuário escolhe acessar os serviços gratuitos da ‘Internet.org’ ou acessar os serviços pagos[5].

Considerando que o projeto visa se estabelecer em países e/ou comunidades menos favorecidas, ou seja, que não teriam condições de arcar com um plano mensal de acesso à Internet, essa escolha ficaria restringida a acessar a web de forma gratuita, por meio desse projeto criado pelo Facebook.

Mcent: uma proposta diferente.

O aplicativo ‘Mcent’, da start-up Jana, propõe ao usuário que possui um smartphone com a tecnologia Android, receber crédito para acessar a Internet com base na utilização dos aplicativos parceiros ofertados dentro dessa plataforma.  Para receber os créditos o usuário necessita escolher um aplicativo, instalá-lo e experimentá-lo. Quanto mais utilizar e/ou divulgar os serviços lá disponíveis, mais créditos o usuário pode receber. Os créditos recebidos pelo usuário são pagos pelas empresas que promovem seus aplicativos dentro dessa plataforma e podem ser utilizados da maneira que o usuário preferir.

Em outras palavras, a empresa reembolsa o usuário pelos downloads feitos e pela utilização e divulgação desses aplicativos, sendo que os valores recebidos podem ser utilizados de maneira irrestrita. Os conteúdos ofertados dentro desse aplicativo são patrocinados por empresas que querem divulgar seus produtos ou serviços, mas ao contrário do ‘Internet.org’, o usuário pode utilizar os valores recebidos para acessar a web, sem restrições.  O aplicativo está disponível no Brasil, Índia, África do Sul, Argentina, Nigéria, Indonésia, entre outros[6].

mcent screenshot.jpgSegue a visualização do aplicativo disponível para download no Google Play [7]:

 

 

 

Utilizando o mesmo exemplo ilustrativo da praça de alimentação, o aplicativo ‘Mcent’ seria um ‘vale-refeição’, onde após almoçar nesse estabelecimento, a pessoa seria reembolsada e poderia escolher como e onde utilizar os valores recebidos.

Desse modo, observa-se que é uma modalidade de negócio que acaba reembolsando os valores gastos, fornecendo, portanto, acesso ‘gratuito’ aos aplicativos ali disponibilizados. Os valores reembolsados são referentes à quantidade de dados utilizada testando ou divulgando os produtos lá oferecidos. Ou seja, o usuário utiliza ‘gratuitamente’ apenas os serviços ofertados dentro da plataforma, o que poderia gerar, mesmo que indiretamente, uma preferência do usuário pelos serviços ‘gratuitos’ lá ofertados, em face dos demais serviços pagos da web.

Apesar de o próprio usuário poder escolher se deseja ou não utilizar o aplicativo e de que não há interferência na forma como o usuário utiliza os valores reembolsados, ainda assim, esse aplicativo desrespeitaria o princípio da neutralidade da rede nos termos da lei 12.965 de 23 de abril de 2014, pois haveria um privilégio a alguns serviços ‘gratuitos’ em face de outros pagos.

Conclusão

Com base em todo o exposto, verifica-se que os aplicativos ‘Internet.org’ e ‘Mcent’ são modelos de negócio diferentes, mas com um objetivo em comum: atrair novos usuários da rede. Ao atrair novos usuários para seus aplicativos, mais informações são geradas, analisadas e utilizadas para gerar lucro para essas empresas. Na realidade, o que esses usuários acessam ‘gratuitamente’ é somente uma parcela restrita da rede.

Observa-se que o ‘Mcent’ defende ser a favor do princípio da neutralidade da rede, pois permite ao usuário usar os valores recebidos da forma que preferir. Mas, apesar de ser uma escolha do usuário em baixar o aplicativo, os créditos recebidos são como um reembolso relativo ao gasto de dados com a utilização de cada aplicativo lá ofertado. Ou seja, acesso ‘gratuito’ aos serviços dispostos apenas nos aplicativos parceiros dessa plataforma.

Em que pese a proposta do Facebook possibilitar o acesso à informação, de forma limitada, aos cidadãos de baixa renda que não teriam condições de acessá-la de outra maneira, ela igualmente não respeita o princípio da neutralidade da rede. Apesar de alegar que o usuário pode escolher acessar o aplicativo gratuito ou escolher adquirir um plano de Internet móvel, este é um modelo de negócio que privilegia alguns serviços em face de outros disponíveis na web.

Dessa forma, mesmo que indiretamente, esses aplicativos contribuem para a criação de barreiras aos pequenos empreendedores da área da tecnologia e privilegiam a circulação de certos conteúdos em detrimento de outros disponíveis na web.

Ademais, o acesso ‘gratuito’ tem um custo para o usuário que não é claramente divulgado, que é a utilização das informações e dados pessoais lá produzidos para gerar lucro. E, ainda, não há garantia integral da privacidade das informações e dados pessoais lá geradas. Ou seja, essas informações poderiam ser interceptadas por terceiros.

Assim, a discussão vai muito além da análise se esses aplicativos e novas formas de negócio ferem a neutralidade da rede ou não. Há um risco muito maior, que envolve a defesa de direitos fundamentais como o acesso à informação e à liberdade de expressão. Quem sairia ganhando no final, não seriam os usuários (como fervorosamente se defende), mas as grandes empresas que além de lucrar com todas as informações geradas dentro de seus aplicativos, transformar-se-iam em grandes filtros da Internet, intermediando com os seus parceiros o que poderia estar acessível ou não.

 


[1] Pós-graduanda em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal do Paraná.  Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Graduada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba. Pesquisadora do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR).

[2] Disponível em: http://www.cgi.br/resolucoes/documento/2009/003. Acesso em 19 jun. 2015.

[3] Disponível em https://www.internet.org/press. Acesso em 28 jun. 2015.

[4] Disponível em: https://play.google.com/store/apps/details?id=org.internet&hl=pt_BR. Acesso em 28 jun. 2015.

[5] Disponível em https://internet.org/press/internet-dot-org-myths-and-facts. Acesso em 28 jun. 2015.

[6] Disponível em: http://blog.jana.com/2015/04/24/reach-25-million-android-users-around-the-world-with-jana.  Acesso em 28 jun. 2015.

[7] Disponível em: https://play.google.com/store/apps/details?id=com.mcent.app&hl=pt_BR. Acesso em 28 jun. 2015.