Direitos conexos ao autor, dubladores e seus direitos

Joaquim Knoor[1]

Engana-se quem pensa que o trabalho de um dublador se resume a simplesmente traduzir a dublagem original ou somente emprestar sua voz ao personagem. O trabalho de um dublador vai além, o profissional deve criar uma voz característica para um determinado personagem que seja condizente com a personalidade do mesmo e que transmita suas características e emoções. Compete ao dublador adaptar as expressões linguísticas para o seu idioma, criar bordões para o contexto nacional, e escolher determinadas palavras que sincronizem com os lábios do personagem.

Uma vez que a grande maioria do público brasileiro prefere consumir conteúdos dublados, o dublador exerce um importante papel no acesso a conteúdos internacionais no Brasil. Segundo o portal Filme B, que é responsável por levantar dados do cinema brasileiro, 59% dos brasileiros optaram por assistir filmes dublados, 13% optou por filmes nacionais e somente 28% preferiu assistir filmes legendados em 2014. Outro dado importante vem do serviço de streaming Netflix, o vice-presidente de produtos da empresa Todd Yellin em uma palestra neste ano afirmou que os brasileiros preferem consumir conteúdo dublado em sua maioria, e como exemplo mostrou que 84% dos assinantes brasileiros assistiram a série “13 reasons why” dublada.

1. O DIREITO CONEXO DO DUBLADOR

O trabalho de um dublador agrega a obra original e da uma interpretação nova a mesma obra essa releitura se chama direito conexo de autor. Na lição de CARLOS ALBERTO BITTAR: “… direitos conexos são os direitos  reconhecidos no plano dos de autor a determinadas categorias que auxiliam na  criação ou na produção ou, ainda, na difusão da  obra intelectual. São os denominados direitos ‘análogos’ aos de autor, ‘afins’, ‘vizinhos’, ou, ainda  ‘paraautorais’, também consagrados universalmente (…) Pacífica é a compreensão dos artistas (cantores), executantes (músicos), organismos de radiodifusão (inclusive televisão) e produtores de fonogramas no âmbito desses direitos” – Curso de Direito Autoral, Forense/1988, p. 172

Em síntese, o trabalho de dublagem é um processo criativo relativamente complexo, e constitui um “acréscimo intelectual” na obra original, e por se tratar de um intérprete que atua para dar voz a um personagem, é por tanto um direito conexo protegido pela lei 9.610-98. O inciso XIII do artigo 5º da lei 9.610 define como artistas intérpretes ou executantes – todos os atores, cantores, músicos, bailarinos ou outras pessoas que representem um papel, cantem, recitem, declamem, interpretem ou executem em qualquer forma obras literárias ou artísticas ou expressões do folclore. Aqui se encontra o amparo legal de proteção dos direitos conexos do dublador, e o artigo 81, §2º da Lei 9.610/98 impõe ao produtor, a obrigação de mencionar em cada cópia da obra audiovisual, dentre outros dados, o nome dos dubladores.

Nos primeiros meses do ano 2000 aconteceu um fato extremante importante envolvendo o tema dos direitos conexos do autor. Inúmeros dubladores se reuniram em São Paulo para exigir o pagamento do uso de suas intepretações feitas a décadas atrás. Dentre as artistas vozes famosas que marcaram a infância de muita gente estavam presentes como o artista Borges de Barros que dublou o personagem Moe Howard de “os três patetas”, e Dr Smithe de “perdidos no espaço”, estava presente também o artista Sérgio Moreno que deu voz ao Mickey e Tatá Guarnieri que dublou o Pluto.  O levante desses dubladores acendeu o debate sobre quem deveria pagar pelo uso de suas vozes e qual seria o prazo para que se pudesse exigir a reparação dos danos morais materiais, uma vez que a maioria dos dubladores ali reunidos haviam dublado os personagens a muitas décadas, porém, algumas continuavam a ser reprisadas sem que os dubladores fossem pagos ou sequer fossem lhes atribuído os créditos pela obra. Esse fato é um marco importante para a proteção dos direitos conexos pois foi a partir daqui que inúmeros artistas tomaram ciência dos seus direitos e começaram a exigir o cumprimento dos mesmos.

2. A JURISPRUDÊNCIA

A lei de direitos autorais excluiu qualquer dúvida sobre a proteção dos interpretes das obras, porém, não se sabe se é de má fé ou desconhecimento da lei, as empresas do ramo do entretenimento insistem em não pagar aos dubladores o valor correto pela distribuição de suas obras ou lhes atribuir o crédito. Em 2012, por exemplo, as empresas Walt Disney Company e Delart Estúdios cinematográficos foram condenadas a pagar R$ 25 mil em danos morais e R$ 15 mil em danos matérias para cara dublador do filme “os incríveis” (R.O. nº 0100600-38.2006.5.01.0043, TRT RO). As empresas em questão contrataram os dubladores para dublar o filme somente para a exibição no cinema, mas houve reprodução das dublagens em DVDs e televisão sem a devida remuneração. A Disney alegou em recurso que teria ficado subentendido no contrato com os dubladores que a exploração econômica iria abranger a distribuição em meios físicos da obra. O juiz Leonardo Dias, relator do TRT da 1ª região não deu provimento ao recurso.

Outro caso idêntico aconteceu em 2011 envolvendo a Fox e o dublador do personagem Jack Bauer. O ministro Massami Ueda do STJ condenou a Fox a pagar uma indenização referente aos direitos conexos do dublador Tatá Guarnieri. O canal de TV Fox contratou o dublador para dar voz ao personagem principal Jack Bauer da série “24 Horas”, o contrato entre as partes previa a exibição do conteúdo somente na TV a cabo, porém, a mesma distribuiu a série na rede aberta e em DVD, utilizando-se da voz do dublador sem lhe pagar os devidos créditos.

Embora consolidada a lei de autor e os direitos conexos, a jurisprudência tem interpretado de forma divergente com relação ao prazo prescricional de exigibilidade de sua proteção. O conflito aparente entre as leis se dá entre o artigo 41 da lei 9610/98 que garante a proteção por 70 anos contados após a morte do autor da obra, e o artigo 206 § 3º inciso V do Código civil de 2002, que atribui prazo de 3 anos para exigência de reparação civil. Seguindo o princípio da lex specialis derrogat lex generalis   o prazo a ser definido pela justiça deveria ser o estabelecido pela lei de autor, porém a jurisprudência tem optado pela aplicação do código civil em casos concretos. No agravo em recurso especial nº 844.459 do TJ-SP que envolvia o não pagamento de direitos conexos ao dublador de dois personagens do filme “Tristão e Isolda” o relator Ricardo Cueva escreveu em seu voto que o prazo para exigibilidade de reparação deve ser contado de acordo com o art. 206 § 3º inciso V do CC, sendo contado o prazo a partir do momento que o dublador tomou ciência do uso indevido de sua obra. O ministro por julgar impossível definir o momento que o dublador tomou ciência considerou o pedido do autor dentro do prazo. Em outro processo também no TJ-SP (Registro: 2015.0000351774) o desembargador Mauro Conti escreveu que o prazo de três anos deve ser contado a partir da última exibição conhecida pelo dublador.

3. O RESP 1.207.447

De todos os casos envolvendo os direitos conexos do autor, talvez o REsp 1.207.447 seja o mais curioso. O caso em questão tinha como recorrente o escritório central de arrecadação e distribuição (ECAD) e como recorrido a empresa Exposserra Ferreira e eventos LTDA, onde o ECAD defendeu o pagamento de direito autoral, além do direito conexo, quando o cantor interpreta a própria canção. O ministro Paulo de Tarso Sanseverino deu provimento ao recurso e justificou dizendo que “o cachê recebido pelo cantor intérprete e a retribuição pelo uso da obra são parcelas inconfundíveis, decorrentes de situações jurídicas bastante distintas, embora possa existir, eventualmente, confusão em relação aos sujeitos que os titulam”.

 


[1] Pesquisador Graduação GEDAI/UFPR