A marca Notoriamente Conhecida e a necessária demonstração da má fé

Breve análise e apontamentos do Resp nº 1.306.335 STJ

Ian Bertoldi

Inicialmente, faz-se necessária uma breve, porém, importante distinção. Apesar da nomenclatura similar, Marca Notória ou de Alto Renome não se confunde com Marca Notoriamente Conhecida. Ambas são regulamentadas pela Lei nº 9.279/96 e recebem tratamento diferenciado no ordenamento jurídico, comportando exceções ao regime regular da propriedade industrial. Enquanto aquela, amparada pelo artigo 125 da lei supracitada, diz respeito as marcas amplamente conhecidas, com grande apelo comercial, que transcendem a área específica do seu produto, e devidamente registradas no Brasil; esta, abordada no artigo 126 da mesma lei, refere-se as marcas cuja atuação ou produto sejam reconhecidas pelo público e apresentem um prestígio diferenciado na sua área de atuação, sem que se verifique o seu registro no Brasil.

Isto posto, nota-se que o ordenamento jurídico brasileiro, no que se refere à propriedade industrial e a proteção à marca, é regido, dentre outros, pelo princípio da territorialidade. Tal princípio, consagrado na Convenção de Paris, confere a proteção do Estado através da patente ou do registro do desenho industrial tão somente dentro dos limites territoriais do país que a concede. Isto é, garante-se a exclusividade da marca registrada apenas nos limites do território nacional e, portanto, a marca, embora exclusiva no país de origem, não goza de proteção no exterior, se não possuir registro nos demais países.

1. DA MARCA NOTORIAMENTE CONHECIDA E O PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE

No entanto, é notório que algumas marcas ultrapassam as fronteiras de seu países e tornam-se conhecidas em escala global, referências de qualidade e objeto de desejo por consumidores do mundo todo, mesmo que não tenham registro nestes países. Afim de evitar que tais marcas sejam objetos de apropriação e utilização indevida, vítimas de seu próprio prestígio, por terceiros interessados em valer-se do renome já estabelecido em benefício próprio, criou-se uma exceção ao princípio da territorialidade.

O artigo 126 da Lei nº 9.279/96, em consonância ao artigo 6 bis da Convenção de Paris, atribui tratamento diferenciado às marcas notoriamente conhecidas e, assim, estabelece uma exceção ao princípio da territorialidade ao estender proteção e exclusividade às marcas estrangeiras, porém notoriamente conhecidas pelo público brasileiro, independentemente de seu registro no Brasil.

Ora, em um mundo com grande e crescente acesso à internet, à conteúdos áudio visuais de outros países e, portanto, em constante trocas culturais e econômicas, a legislação não poderia deixar de proteger marcas que conquistaram posição de prestígio na opinião pública internacional, baseando-se em um princípio – territorialidade- que, em muito, é ignorado pelo fenômeno da globalização. Assim, ao prever um tratamento especial e diferenciado, a Lei de Propriedade Industrial de 1996 reconhece, pela primeira vez em legislação pátria, o direito de tais marcas de se beneficiarem de seu renome, e busca, igualmente, combater a má fé de terceiros interessados em tirar proveito de uma reputação já estabelecida mundialmente.

2. O CASO RYDER SYSTEM, INC. X RYDER SERVIÇOS E LOCAÇÕES DE SERVIÇO

A partir deste contexto de proteção à marca notoriamente conhecida, a Ryder System, Inc. ajuizou ação objetivando anulação de registro (n° 066.477.887) da empresa Ryder Serviços e Locação de Veículos Ltda., bem como do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI. Sobre este tema trata o Recurso Especial nº 1.306.335 do STJ.

A autora, alega que o registro se deu de forma imprópria (com má-fé), vez que é uma das líderes mundiais de seu ramo, emprega milhares de funcionários, e detém registro em mais de 60 países, desde 1971, e considera-se “a marca e o nome empresarial da maior multinacional de transportes do mundo”.

Verifica-se que a empresa Ryder Serviços e Locação de Veículos Ltda. teve o seu pedido de registro depositado em 27/11/1975 e concedido em 10/11/1976, e o pedido de anulação deste registro deu-se em 02 de fevereiro de 2006.

Assim, tanto na legislação vigente na década de 70, a lei Lei n° 5772/71, quanto na atual, a Lei 9.279/96, o prazo prescricional da ação para declaração de nulidade de registro previsto no ordenamento jurídico é de cinco anos contados da data de sua concessão. Logo, segundo a norma e o procedimento padrão, o prazo estaria esgotado há 35 anos.

Contudo, como salientamos, há uma previsão específica para as marcas de grande reputação mundial. Nestas situações, observada a má fé no registro de novas marcas com o intuito de copiar marcas notoriamente conhecidas, altera-se o curso natural do processo, inverte-se o ônus acusatório e anula-se o prazo prescricional previsto em Lei.

Nestes casos específicos, o entendimento não poderia ser outro se não o de que a tentativa de registro de mesma marca é uma ação de má fé, que busca tirar proveito do prestígio alheio. Portanto, para registros e depósitos de marcas efetuados de má fé, a ação de declaração anulatória de registro é imprescritível. Assim está fixado no artigo art. 6 bis (3) “Não será fixado prazo para se reclamar a anulação das marcas registrada de má-fé”.

Importante ressaltar que, ainda que, desde 1996, é previsto em Lei a proteção diferenciada à tal categoria de marcas, não há uma definição legal do que se entende por marca notoriamente conhecida, e tampouco, qual o procedimento adequado para reconhecer tais marcas. Face a lacuna normativa, a doutrina busca maneiras de verificar quais marcas, de fato, se enquadram neste conceito e, portanto, podem beneficiar-se de proteção especial.  Para tal, elemento como amplo conhecimento do público, liderança ou grande e importante papel no seu segmento de atuação, são fundamentais.

Não obstante ao fato da autora ter elencado alguns destes aspectos fundamentais que caracterizam a marca Ryder System, Inc. como notoriamente conhecida atualmente, o recurso foi negado na origem e em posterior recurso. Ambas instancias do poder judiciário entenderam pela prescrição do pedido de anulação do registro, já que não foi comprovada a notoriedade da autora quando do registro da marca Ryder Serviços e Locação de Veículos Ltda., descaracterizando, assim, a má fé na propositura do depósito da marca.

Deflui dos autos que a pretensão autoral encontra-se induvidosamente prescrita em razão do enorme lapso temporal ocorrido entre a data da propositura da ação (02/02/2006) e a data da expedição do registro, em 10/11/76 – ou seja – mais de 30 anos, ultrapassando em muito o prazo concedido pela lei para desconstituição de título por vício de nulidade. Assim, em que pese a alegação de que o registro foi efetuado com má-fé, na tentativa de impedir a incidência da prescrição com base no item (3) do artigo 6º, bis, da CUP, o fato é que nada nos autos – incluindo a prova pericial de fls. 789/852 – faz prova da notoriedade da marca “RYDER” no Brasil por ocasião do registro da Apelada, ou que esta tivesse qualquer conhecimento do signo alienígena na data do depósito da marca. De sorte que, não tendo a apelante logrado comprovar a má-fé da Apelada, nem a caducidade da marca no período assinalado, impende confirmar a sentença, ressalvando, por oportuno, de que caducidade não dá azo à nulidade, e sim, à extinção de título. Com estas considerações, nego provimento ao Apelo, confirmando a sentença.

        (acordão recorrido. Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça)

 

A ação ascendeu ao Supremo Tribunal de Justiça pelo provimento do agravo e relatado pelo Exmo. Sr. Ministro Luis Felipe Salomão.

3. A DECISÃO

Para o ilustre ministro, resta claro que a Lei de Propriedade Industrial de 96, que estabelece como regra geral a prescrição em cinco anos, e a Convenção da União de Paris de 1883, que assegura a imprescritibilidade nos casos de má fé, não estão em conflito, vez que o objetivo de ambos os dispositivos normativos é combater o “aproveitamento econômico parasitário, o desvio desleal de clientela alheia e, por outro, evitar que o consumidor seja confundido quanto à procedência do produto”.

Isto posto, “A controvérsia, portanto, está exatamente em definir se a conduta da recorrida – ao registrar a marca Ryder -, máxime por se estar diante de marca notoriamente conhecida em seu mercado de atuação, pode ser tida como eivada de má-fé, para fins de imprescritibilidade da pretensão” (fl. 13). Isto é, a má fé deverá ser observada desde quando o ato de registro. Caracterizando, assim, que a recorrida registrou-se com tal nome para beneficiar-se de prestígio da recorrente.

No caso em análise, para que a má fé seja constatada, a Ryder System, Inc. deveria gozar de alto renome e reputação mundial, já no ano de 1975, quando a Ryder Serviços e Locação de Veículos Ltda. foi registrada. Nas palavras do próprio ministro “bastará ao requerente a demonstração de que a marca reivindicada era notoriamente conhecida, ao tempo do registro indevido, para obter, em seu favor, a inversão do ônus da prova da má-fé em face do requerido, anterior registrador e, como reverso da medalha, a boa-fé do reivindicante.” (fl.14)

Portanto, reconhecida que o ordenamento brasileiro comporta a imprescritibilidade da ação anulatória nos casos em que se constate má fé, e demonstrada a notoriedade da marca na atualidade, resta, enfim, comprovar a notoriedade da marca à época do registro. Sem este último elemento, não há como presumir má fé, e consequentemente, não é possível inverter o ônus da prova e reivindicar a imprescritibilidade.

Neste sentido, a sentença original, o acórdão recorrido e o ministro Exmo. Sr. Ministro Luis Felipe Salomão, concordam que “nada nos autos – incluindo a prova pericial de fls. 789/852 – faz prova da notoriedade da marca “RYDER” no Brasil por ocasião do registro da Apelada, ou que tivesse qualquer conhecimento do signo alienígena na data do depósito da marca.” (acordão recorrido. Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça).

Logo, o fundamento crucial para o provimento do pedido da autora não foi demonstrado em instância alguma do processo. Impossível, portanto, falar-se em má fé quando do registro e, consequentemente, não há como escapar ao signo da prescrição previsto no artigo 174 da Lei 9.279/96. Por fim e face ao exposto, não poderia ser outro o voto do ministro se não pelo desprovimento do pedido de anulação de registro.