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Deus e o diabo na terra dos direitos autorais: complexidade nas relações entre os direitos dos profissionais em obras cinematográficas

Igor Halter Andrade

O cinema, enquanto arte coletiva, pode envolver centenas de profissionais em seu processo de criação, tal aspecto é notório ao se analisar as diferentes etapas da cadeia produtiva do cinema comercial (pré-produção, produção, pós-produção, distribuição e exibição), que tomam dimensões cada vez maiores em países com indústria cultural emergente, como no caso do Brasil.1

Outra particularidade desse sistema produtivo de grande escala diz respeito às diferentes formas de composição dos processos criativos dos profissionais, o que gera um amplo leque de possibilidades de disputa por direitos autorais em uma única obra.

1. A complexidade dos processos de criação e produção

Para compreender o funcionamento desses processos, é importante se ater à divisão existente entre as funções desempenhadas durante a fase de produção do filme: dos profissionais autores (chefes de equipe ou departamento) e dos profissionais técnicos; enquanto os primeiros são responsáveis pelo trabalho criativo e pela organização de cada setor do filme – em regra, exercem um papel diretivo, como no caso do diretor de arte, diretor de fotografia, diretor de som, e assim por diante –, os segundos são responsáveis pela execução das ideias propostas.

Para ilustrar, podemos considerar uma equipe de fotografia: o diretor de fotografia seria o responsável pela concepção artística da luz e de aspectos específicos dos enquadramentos e da filmagem, já os operadores de câmera, os maquinistas e os eletricistas seriam os responsáveis pela execução dessas ideias, tudo sob a supervisão do diretor-geral do filme (também chamado apenas de diretor), ou do produtor, em uma lógica mais voltada para o mercado, como em Hollywood.

Claro que é possível argumentar a existência de um trabalho criativo por parte dos técnicos, como no caso do operador de câmera brasileiro Dib Lutfi, reconhecido internacionalmente por sua técnica de movimentação com a câmera na mão e por ser um dos principais responsáveis pela estética do Cinema Novo no Brasil, sobretudo nos filmes dirigidos por Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos.2

Mas seria possível que Dib ou mesmo um diretor de fotografia exigissem o seu reconhecimento enquanto coautores de uma obra cinematográfica?

2. A legislação brasileira de Direitos Autorais

No Brasil, as obras produzidas durante a vigência da lei 5988/733, conforme o disposto no art. 15, pertenciam ao seu produtor. Contudo, no fim da mesma década, foi criada a lei 6533/784, que regulamenta a profissão de artistas e técnicos, e que em seu art. 13 impede a cessão de direitos autorais (direito de autor e os que lhe são conexos) por parte de seus detentores. Dessa forma, a partir de 1978, duas leis vigiam sobre o tema: uma que dizia que os direitos sobre a obra cinematográfica pertenciam ao produtor, e outra que impedia a cessão desses direitos a partir da prestação de serviços.

Em 1998, com a lei 9610/985, os direitos patrimoniais deixaram de pertencer ao produtor e passaram aos autores da obra, salvo convenção em contrário entre as partes e nos casos previstos pela lei.

Entretanto, cabe ressaltar que no escopo dessa mesma lei compreende-se que os titulares dos direitos autorais da obra audiovisual seriam apenas o músico, o diretor e o autor-roteirista.

Em seu art. 25, a lei 9610/98 contempla ao diretor os direitos morais da obra e em seu art. 24 delimita quais são esses direitos morais.

No caso dos demais profissionais que exercem uma função criativa e contribuem artisticamente para a obra, como no exemplo do diretor de fotografia, os direitos autorais que lhe são reservados são os chamados direitos conexos pela criação artística-intelectual.

Ou seja, é possível a proteção de seus direitos, que podem ser morais ou patrimoniais, somente na esfera específica de suas criações, não do produto audiovisual como um todo.

Frente a essa complexidade de relações entre os direitos autorais e os trabalhos criativos dos profissionais do cinema, encontra-se o vínculo mais intrínseco e, talvez por isso, objeto de possíveis tensões: a relação entre os direitos autorais do diretor (especificamente do diretor-geral) e do roteirista (ou roteirista-autor).

Os meandros dessa questão são ambíguos, pois muitas vezes esses papéis são exercidos pela mesma pessoa ou de forma incomum, principalmente no cinema chamado autoral, de arte, e/ou independente (que se opõe ao cinema comercial e que não segue necessariamente uma lógica industrial ou mercadológica). Um dos casos mais emblemáticos de conflito envolvendo essas figuras foi protagonizado pelo diretor mexicano Alejandro González Iñárritu e o roteirista com quem trabalhou por muitos anos, Guillermo Arriaga.

O atrito entre os autores teve início quando Arriaga passou a pleitear a coautoria dos longas-metragens roteirizados por ele, uma vez que, segundo seu julgamento, boa parte do sucesso e reconhecimento que estavam recebendo se dava, também, por conta da qualidade excepcional de seus roteiros, reconhecidos e aclamados mundo afora.

Por outro lado, o diretor contestava dizendo que Arriaga estava desconsiderando o trabalho criativo de toda a equipe ao reivindicar a coautoria dos filmes para si, chegando a proibir o mesmo de acompanhar as filmagens de “Babel” (último longa-metragem que fizeram em parceria)6. Logo em seguida, os autores romperam relações e seguiram suas carreiras de forma desassociada, sem que Arriaga tivesse sua coautoria reconhecida oficialmente.7

Cabe ressaltar que a função do roteirista, como todas as funções na cadeia produtiva do cinema, pode ser desempenhada de forma autoral, ou seja, com liberdade de criação para o autor, ou de forma meramente técnica, a partir de encomendas para desenvolver algo específico, o que não afeta a aplicação do direito autoral no Brasil. Nesse contexto de encomenda, muito comum no cinema comercial hollywoodiano, chamou a atenção o recente embate, ainda sem desfecho, entre Victor Miller, roteirista da famosa série de terror “Sexta-feira 13” e os produtores da Here, Horror Inc. e Manny Company, detentoras dos direitos da franquia. Enquanto Victor reivindica sua autoria das obras, os produtores se defendem dizendo que os roteiros teriam sido feitos sob encomenda e que o trabalho de criação teria sido técnico e impessoal, ademais, Miller nunca teria escrito um roteiro até então, além de ter recebido diversas orientações durante o processo.

Esse formato de negócio é conhecido como “buy out”, onde os produtores pagam uma única vez pelo roteiro, sem que o autor tenha direito a receber valores relacionados aos lucros futuros da obra, mesmo que haja um ganho desproporcional comparado ao seu custo inicial, como no caso da franquia “Sexta-feira 13”.8

3. Perspectivas futuras no Brasil

Em setembro de 2016, ocorreu no Rio de Janeiro o Congresso Mundial de Roteiristas e Diretores, onde foi lançada uma nova associação para gerir os direitos autorais dos roteiristas, a GEDAR (Gestão de Direitos de Autores Roteiristas).

Essa entidade pretende operar como o ECAD, que arrecada e distribui dinheiro aos compositores cada vez que suas músicas são executadas publicamente.

O evento reuniu profissionais de diversos países, incluindo roteiristas de países latino-americanos que enxergam no Brasil o estopim para que mais ações como essa sejam concretizadas em seus países.

Além disso, também foi criada uma proposta legislativa para o reconhecimento da remuneração contínua decorrente dos direitos autorais para diretores e roteiristas, o projeto de lei “Nelson Pereira dos Santos”.9

Com relação aos demais artistas envolvidos na produção audiovisual, a discussão ainda se encontra em um patamar inicial no Brasil.

Em países da Europa, como na Alemanha e na Suécia, por exemplo, o diretor de fotografia e outros artistas já podem ser considerados coautores da obra audiovisual, o que lhes confere maior segurança para reclamar seus direitos em casos de contestação.10

Referências:

[1] https://www.ancine.gov.br/pt-br/sala-imprensa/noticias/estudos-da-ancine-apontam-que-o-mercado-audiovisual-brasileiro-segue

[2] http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/10/1826818-fotografo-dib-lutfi-deixou-marcas-mitologicas-no-cinema-brasileiro.shtml

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5988.htm

[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6533.htm

[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm

[6] http://www.elmundo.es/elmundo/2007/02/27/cultura/1172564366.html

[7] https://www.theguardian.com/film/2009/feb/20/guillermo-arriaga-film-mexico

[8] http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-123969/

[9] http://www.telabrasileira.com.br/article/news/nova-associacao-fara-a-gestao-dos-direitos-autorais-dos-roteiristas

[10] http://www.abcine.org.br/servicos/?id=152&/a-abc-e-a-questao-dos-direitos-autorais-para-os-diretores-de-fotografia