Livros Proibidos e Filosofia

Livros Proibidos e Filosofia[1]

Sérgio Said Staut Júnior [2]

 

Os livros proibidos, não autorizados para impressão ou livros piratas do Antigo Regime francês, possuíam uma série de denominações. Genericamente eram chamados pela população de “maus livros”[3], mas também palavras como “livros clandestinos”, “drogas” e “misérias” serviam para identificar o que era proibido no campo da impressão das ideias.[4]

Outra expressão curiosa, consagrada pelos editores e livreiros, chama a atenção por sua criatividade e por sua carga simbólica. Eles denominavam os livros ilegais de “livros filosóficos”[5]. Este termo servia como um sinal, dentro do “código comercial” dos livreiros e editores, que designava obras literárias que poderiam trazer sérios problemas para aqueles que as manuseassem e que, por isso, deveriam ser tratados com muito cuidado.

Os “livros filosóficos”, comercializados por meio de catálogos especiais, geralmente eram mais caros, envolviam riscos na sua produção e distribuição e, frequentemente, tornavam-se “best-sellers”, ainda mais se queimados no pátio do Palais de Justice em Paris. A curiosidade estava ligada diretamente à proibição.

Segundo estimativa de Robert DARNTON, “as autoridades condenaram em média apenas 4,5 livros e panfletos por ano, nas décadas de 1770 e 1780, e queimaram em público apenas dezenove deles. No entanto, enquanto essas obras ardiam em chamas, milhares de outras circulavam secretamente através dos canais do comércio clandestino de livros. Formavam a dieta básica de literatura ilegal para os leitores famintos de todo o reino. E no entanto ninguém sabe que livros eram esses. Qual era o tamanho e a forma dessa massa de literatura, da variedade comumente vendida ‘por baixo do pano’ por vendedores ambulantes em toda parte? O próprio regime não tinha ideia.”[6]

O conteúdo das obras denominadas “filosóficas” variava muito: livros de literatura, de ciência política, livros pornográficos e até mesmo livros de filosofia, constituíram uma gigantesca “Filosofia por baixo do pano”[7]. Os critérios que estabeleciam se um livro seria censurado ou não variavam muito e chegavam a ser, inclusive, arbitrários. Provavelmente, em meio a tanta variedade literária, a única semelhança entre as inúmeras obras que foram censuradas, proibidas ou que, de alguma forma, não estavam autorizadas pelo Antigo Regime francês, era a denominação “livros filosóficos”. E, como indicava o código de livreiros e editores, “Filosofia sinalizava perigo”[8].

Não são raros os juristas (e alguns políticos) que se preocupam “tão somente” com o que denominam direito, como se possível fosse definir perfeitamente e separar categoricamente o que é direito do que não é.[9] Ainda hoje, embora com um sentido diverso, filosofia representa (ou pode significar), em determinados ambientes, certa ameaça.

No Antigo Regime francês filosofia sinalizava perigo, mas também despertava a curiosidade e estimulava a leitura. Atualmente, para boa parte do pensamento jurídico dogmático, preocupado em separar categoricamente a ciência jurídica das outras ciências, a filosofia, assim como a sociologia, a história, a psicologia e a antropologia (entre outras “disciplinas”), sinaliza o que não diz respeito à normatividade jurídica e o que, por isso, não deve ser estudado pelos juristas. Para essa linha de pensamento, a filosofia representa ou pode representar perigo, porque questiona ou pode questionar os fundamentos do discurso jurídico e demonstra muitas das suas limitações[10].

No âmbito da produção e exteriorização das ideias, assim como a sua regulamentação jurídica, o conteúdo do que é permitido ou não pode ter sofrido alteração, mas muitas e novas restrições podem ser observadas. Outros sistemas de interdição, com mecanismos menos evidentes, agindo de forma mais sutil e por isso mais efetiva, são encontrados na literatura, nas artes, no campo da ciência e também no direito.

No entanto, assim como no Ancién Régime francês, atualmente, em parte da produção acadêmica em direito existem ainda muitos “livros filosóficos”, “obras subversivas”[11], que não respeitam os padrões de aceitação impostos pela sociedade e pelo mercado e que também constituem uma verdadeira “filosofia por baixo do pano”.[12] São obras “filosóficas” que procuram demonstrar outras realidades e possibilidades para além da simples regulação e interpretação de relações jurídicas abstratas, tão comuns no discurso jurídico tradicional. Uma produção literária que sofre, mas também denuncia o sistema contemporâneo de interdição que não se baseia mais no domínio real ou na autoridade eclesiástica e sim em um sistema intrincado que envolve os autores, os editores, os produtores, os distribuidores, a sociedade, o Estado, as novas tecnologias e o mercado de bens culturais.

Investigar criticamente a possibilidade de construir e afirmar “outros discursos” sobre o direito e o seu papel em sociedade passa necessariamente por denunciar a “normalidade” do sistema jurídico vigente, apontar os limites dos discursos tradicionais (consagrados na doutrina, na jurisprudência e no âmbito legislativo), denunciar muitas das suas “vítimas” e não ter preconceitos com a filosofia.

 

[1] Trecho publicado originalmente, com algumas modificações, na introdução do livro: STAUT JÚNIOR, Sérgio Said. Direitos autorais: entre as relações sociais e as relações jurídicas. Curitiba: Moinho do Verbo, 2006.

[2] Professor Associado do Curso de Direito e do Programa de Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Vice Coordenador do PPGD-UFPR. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação da UFPR. Realizou Pós-Doutorado no Centro di Studi per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Università degli Studi di Firenze, Itália. Integrante do Núcleo de Pesquisas de História, Direito e Subjetividade do PPGD/UFPR. Membro do Instituto Brasileiro de História do Direito – IBHD. Membro do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Informação – GEDAI.

[3] A expressão “maus livros”, conhecida por todos, era a preferida da polícia francesa. (DARNTON, Robert. A filosofia por baixo do pano. In: DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (orgs.). Revolução impressa: a imprensa na França 1775-1800. São Paulo: Edusp, 1996, p. 54).

[4] DARNTON, Robert. A filosofia por baixo do pano… p. 51.

[5] Segundo Robert DARNTON, “editores e livreiros preferiam um termo mais elevado: ‘livros filosófico’ (…) para designar livros que poderiam trazer-lhes problemas (…)”. (DARNTON, Robert. A filosofia… p. 54). Daniel ROCHE afirma que a expressão “obras filosóficas” significava “um termo que acabou por ser aplicado a todo o texto perigoso, a todos os ‘maus livros’.” (ROCHE, Daniel. A censura e a indústria editorial. In: DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (orgs.). Revolução impressa: a imprensa na França 1775-1800. São Paulo: Edusp, 1996, p. 22).

[6] DARNTON, Robert. A filosofia …, p. 49.

[7] DARNTON, Robert. A filosofia …, p. 49.

[8] DARNTON, Robert. A filosofia … p. 54.

[9] Existem muitos livros e manuais de Introdução ao Estudo do Direito ou de Teoria do Direito que se preocupam, desde o início, em definir “o que é o direito?”. Talvez, fosse mais interessante trabalhar com outras perguntas como: “O que pode ser direito” ou “O que pode não ser direito”. Compreender a profunda relatividade histórica e cultural do direito parece ser uma atitude necessária para quem quer estudar e entender os possíveis e inúmeros significados e conteúdos da dimensão jurídica de uma sociedade e dos discursos que procuram explicá-la.

[10] Conforme observa Agostinho Ramalho MARQUES NETO, “Se o sujeito sai de um curso de Direito bem dogmático e bem competente em seu dogmatismo, e se o sujeito incorporar aquilo muito bem, ele está bem vacinado, efetivamente, contra a possibilidade de vir a pensar criticamente sobre o sentido do Direito. Para esse sujeito, qualquer crítica é extremamente perigosa e o incomoda, digamos assim, no seu próprio âmago.”(MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Reflexões sobre o ensino do direito, In: Anais do seminário nacional de ensino jurídico, cidadania e mercado de trabalho, Curitiba: CAHS, 1995. p. 26).

[11] Obras subversivas, mas que não se identificavam apenas com os ideais revolucionários. Subversivas porque rompiam com o senso comum daquilo que era aceitável seja pela autoridade real, seja pela autoridade eclesiástica na França pré-revolucionária. (DARNTON, Robert. A filosofia …).

[12] Conforme acentua Michel VILLEY: “A ciência do direito não é inteiramente autônoma, plenamente autárquica; ela depende, quanto a seus princípios, de uma outra disciplina que se chamava outrora ‘arquitetônica’. Disso os juristas deverão convencer-se: toda ciência do direito é condicionada a um sistema geral de filosofia.” (VILLEY, Michel. Filosofia do direito: definições e fins do direito. São Paulo: Atlas, 1977, p.20).

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